1
AS ÁREAS INUNDÁVEIS EM MEIO URBANO
A abordagem dos instrumentos de planeamento territorial
Margarida PEREIRA
Professora Auxiliar com nomeação definitiva, DGPR, FCSH, UNL, Avenida de Berna, 26-C, 1069-061
LISBOA (PORTUGAL),Tel.: +351.217933519, Fax:+351.217977759,
ma.pereira @fcsh.unl.pt
José Eduardo VENTURA
Professor Auxiliar com nomeação definitiva, DGPR, FCSH, Avenida de Berna, 26-C, 1069-061
LISBOA (PORTUGAL),Tel.: +351.217933519, Fax:+351.217977759,
je.ventura @fcsh.unl.pt
RESUMO
As áreas vulneráveis à ocorrência de cheias têm vindo a crescer em Portugal, tornando-se
particularmente marcantes em meio urbano, onde os prejuízos humanos e materiais atingiram elevadas
proporções nos últimos anos.
As alterações das condições de drenagem natural – modificação da topografia e do coberto
vegetal, impermeabilização sistemática de extensas áreas, incorrecto desvio e/ou canalização de linhas
de água, obstrução do leito maior – conjugadas com precipitação intensa, geram/potenciam situações
de inundação que é indispensável minimizar/acautelar.
Os instrumentos de planeamento territorial devem equacionar o ordenamento destas áreas de
risco, tendo em conta a sua especificidade.
Actualmente, a identificação das áreas inundáveis ocorre no âmbito da delimitação da Reserva
Ecológica Nacional (onde se integram “os leitos dos cursos de água e zonas ameaçadas por cheias” e
das “áreas adjacentes” (ao abrigo do Decreto–Lei nº 468/71, de 5 de Novembro, alterado pelo Decreto–
Lei nº 89/87, de 26 de Fevereiro), embora nesta sede as áreas urbanas fiquem prejudicadas. No
interior dos perímetros urbanos, o Ministério do Equipamento, Planeamento e Administração do
Território, através do Decreto-Lei nº 364/98, de 21 de Novembro, determinou a obrigatoriedade dos
Planos Municipais de Ordenamento do Território procederem à identificação das áreas inundáveis,
passando a constituir uma condicionante na definição da ocupação.
A presente comunicação aborda a temática a partir de um caso de estudo na Área Metropolitana
de Lisboa. Num cenário de progressivo agravamento das inundações, decorrente da acção antrópica
nas bacias hidrográficas, o objectivo é avaliar a aplicabilidade e eficácia dos instrumentos criados pela
Administração para a sua mitigação e sistematizar as principais dificuldades à gestão destas áreas.
Palavras–chave: cheia, inundação, ordenamento do território, medidas estruturais, bacia
hidrográfica.
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
2
1. ENQUADRAMENTO DA TEMÁTICA
As inundações constituem um dos riscos naturais com maior regularidade de ocorrência em
Portugal. Apesar dos prejuízos que podem causar, são dos riscos naturais de mais fácil gestão, pois
afectam áreas susceptíveis de prévia identificação (CHAPMAN. 1994). Todavia, não obstante o
conhecimento desse risco potencial, continuam a ser um problema social e económico na maioria dos
países.
As abordagens a esta temática são diversas, desde a caracterização do fenómeno em si mesmo
até à ponderação da natureza das intervenções, quer no sentido da gestão do escoamento, quer da
gestão do uso do solo na óptica do ordenamento do território, Este visa, entre outros objectivos, a
utilização racional do espaço, a preservação dos recursos naturais e a minimização dos riscos.
Embora os conceitos de cheia e inundação sejam muitas vezes utilizados como sinónimos, têm
diferentes significados: a cheia é consequência da subida do nível das águas num curso de água em
resultado de causas que podem ser diversas, provocando inundação sempre que o leito menor não
tenha capacidade para escoar a água que aí converge.
Tradicionalmente associadas aos grandes rios, hoje têm cada vez mais expressão as
inundações causadas por pequenos cursos de água e as de génese urbana. Nos grandes rios, embora
mais comuns, são, em geral, menos graves, pois a sua génese e progressão permite prever a subida
das águas e prevenir algumas das consequências; as de génese urbana, induzidas pelo deficiente
escoamento das águas pluviais, podem causar elevados danos e transtornos, mas são menos temíveis
pois o nível das águas não ultrapassa algumas dezenas de centímetros, afectando pisos térreos, caves
e infra-estruturas subterrâneas; as resultantes de pequenos cursos de água que percorrem áreas
urbanas provocam prejuízos avultados (COSTA, 1986). Nestes, pressão urbana associada à escassez
do escoamento durante longos períodos, induzem uma ocupação das respectivas bacias que
menospreza o seu carácter torrencial e os riscos que lhe estão associados. A inundação é agravada
quando a baixa altitude e planura dos sectores terminais dos cursos de água permite a influência das
marés. Nas situações em que a enchente coincide com a praia-mar, aumenta a dificuldade de
evacuação dos caudais, ainda agravada com a ocorrência de fenómenos de storm surge.
As inundações são provocadas por factores naturais e ampliadas por factores antrópicos. Nos
primeiros sobressaem a precipitação (responsável primordial pelo desencadeamento da situação),
regime de escoamento torrencial, configuração morfológica da bacia, natureza geológica dos solos e
características do coberto vegetal ou a sua ausência. Nos segundos destacam-se a pressão urbana e
inerente impermeabilização de vastas superfícies, obstruções à livre circulação da água, artificialização
de linhas de água e menorização das áreas de risco. A gravidade da inundação está directamente
relacionada com o período de retorno, nível alcançado pelas águas, extensão da área afectada,
velocidade do escoamento e materiais (tipo e quantidade) transportados. A magnitude de uma cheia
com um período de retorno de cem anos constitui geralmente o referencial máximo, para a delimitação
das áreas de risco e para o dimensionamento óptimo de obras hidráulicas.
Nas periferias urbanas a vulnerabilidade a este fenómeno natural acentua-se com a ocupação do
território e actividades humanas. As alterações do uso do solo têm-se pautado pelo abandono da
actividade agrícola, zeladora dos campos e do regular funcionamento do sistema hidrológico e pelo
contínuo avanço das áreas urbanas. O processo de urbanização é precedido pela destruição do
coberto vegetal e movimentação de terras, com o consequente incremento da erosão, desvio,
canalização ou mesmo supressão de linhas de água, concorrendo para a desordem da rede
hidrográfica. A urbanização de génese ilegal é ainda mais gravosa, dado que, em regra, ocupa áreas
com fortes condicionantes biofísicas.
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
3
Esta mudança é responsável pela progressiva impermeabilização e consequente aumento da
proporção de água precipitada que alimenta o escoamento superficial e das pontas de cheia. Nas
pequenas sub-bacias, a ocupação em contínuo artificializa o escoamento e agrava os riscos a jusante.
Nos leitos de cheia, as construções para além de sujeitas aos efeitos das inundações,
transformam-se em obstáculos à progressão das águas, provocando a subida do seu nível a montante
e um aumento da velocidade e do potencial destrutivo da corrente.
2. AS INUNDAÇÕES NA PERIFERIA DE LISBOA
A periferia urbana de Lisboa tem sido das regiões mais atingidas por inundações dos tipos
referidos anteriormente. De entre elas destacam-se, pela sua gravidade, as causadas pelos pequenos
cursos de água locais. As suas bacias, algumas de vezes de forma circular (a escorrência dos vários
sub-afluentes a convergir em simultâneo no sector terminal) e com uma área que não excede algumas
centenas de quilómetros quadrados, a par de chuvas intensas, com duração superior ao tempo de
concentração da cheia na respectiva bacia vertente (geralmente inferior a 6 horas segundo alguns
autores), estão na génese de graves inundações (QUINTELA, 1988).
As características morfológicas e geológicas da região, com vertentes declivosas e solos pouco
permeáveis, também favorecem elevadas velocidades de escoamento e uma enorme capacidade de
erosão e transporte de materiais. Nestas condições, os episódios de precipitação intensa mais longos
podem gerar subidas repentinas do caudal nos pequenos cursos de água de regime torrencial, o que
dificulta o funcionamento de sistemas de previsão e alerta das populações.
A margem direita do Tejo é a mais afectada, distinguindo-se as situações associadas às ribeiras
a oeste de Lisboa, que desaguam no troço terminal do Tejo (por exemplo Alcântara, Jamor, Lage e
Vinhas) e as associadas às linhas de água a norte de Lisboa (com especial destaque para o Rio
Trancão). No primeiro caso trata-se de bacias de pequena dimensão, alongadas, e com pendores
acentuados. No segundo caso, o Trancão e seus afluentes assumem características particulares,
decorrentes quer do perfil longitudinal, declivoso nos sectores de montante e plano no sector terminal;
quer da convergência próxima dos seus principais afluentes na planície aluvial, que comunica com o
Tejo por uma garganta apertada. As particularidades descritas conferem a esta bacia hidrográfica
apetência para a ocorrência regular de inundações, que muitas vezes afectam extensas áreas (ROXO
e VENTURA, 1986). Os relatos destas ocorrências, na comunicação social escrita, percorrem quase
todas as décadas do século passado, e o seu carácter devastador é referido em documentos histórico.
Estas peculiaridades justificam a opção da escolha da bacia do Trancão para uma análise mais
detalhada nesta comunicação.
Embora comuns nas últimas décadas, as de 1967 e 1983 atingiram a dimensão de catástrofe,
com perda de vidas humanas (centenas em 1967 e cerca de uma dezena em 1983) e elevados danos
materiais em habitações e estabelecimentos comerciais e industriais.
Após o evento de Novembro de 1967, a tarefa prioritária das autoridades foi o realojamento dos
sobreviventes desalojados e a remoção das construções clandestinas mais afectados bem como dos
obstáculos ao escoamento. Só na sequência das inundações de 1983, a Administração adoptou
medidas com mais consistência e continuidade.
3. A PREVENÇÃO DAS INUNDAÇÕES
No âmbito da prevenção das inundações em Portugal individualizam-se dois tipos de medidas:
- as do quadro legislativo regulador do uso do solo;
- as acções correctivas na bacia hidrográfica.
3.1 Evolução do quadro legal
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
4
No quadro legislativo relevam-se as condicionantes à utilização do domínio hídrico e as
orientações definidas pelos instrumentos de planeamento (integrado e sectorial).
Na sequência dos acontecimentos de 1967 a Administração legisla sobre esta matéria em 1971
com a publicação do Decreto-Lei nº 468/71, de 5 de Novembro que revê, actualiza e unifica o regime
jurídico dos terrenos incluídos no domínio público hídrico, até então dispersos por múltiplos diplomas,
define os conceitos de leito
1
, margem
2
e zona adjacente
3
e a disciplina da ocupação dos leitos de
cheia. Este diploma previa a classificação, por Decreto-Lei, das denominadas zonas adjacentes (artº
14º). Nestas, a aprovação de planos e contratos de urbanização e expansão, bem como o
licenciamento e a realização de obras careciam do parecer da DGRAH (artº 15º).
Os terrenos privados situados nas margens do domínio hídrico e nas zonas adjacentes ficaram
sujeitos a servidões e restrições de utilidade pública. A execução de obras nas margens passou a exigir
o licenciamento da então Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos (DGRAH).
O Decreto-Lei nº 468/71 teve poucos efeitos práticos – não houve zonas adjacentes
classificadas e poucas vezes a faixa de protecção dos 10 metros para as linhas de água não
navegáveis ou flutuáveis foi considerada. Este diploma sofreu alterações pelo Decreto-Lei nº 89/87, de
26 de Fevereiro, que estabeleceu medidas de protecção às zonas ameaçadas pelas cheias, no que
respeita ao regime das zonas adjacentes, que passam a ser classificadas por Portaria. Nas margens
das águas não navegáveis nem flutuáveis a ocupação ou utilização dos terrenos ficou condicionada à
aprovação do Instituto da Água (INAG). Nas zonas adjacentes às margens ameaçadas por cheias,
demarcadas e classificadas por portaria, são definidos dois tipos de restrições: áreas non aedificandi e
áreas de ocupação condicionada, apontando as práticas interditas e as permitidas para ambos os
casos (Quadro 1).
Nas zonas ainda não classificadas como adjacentes a aprovação de Planos de Urbanização
(PU), e de contratos de urbanização bem como o licenciamento de operações loteamento urbano ou de
Planos de Pormenor (PP) de obras ou edificações ficou dependente de parecer vinculativo do INAG,
quando dentro do limite da maior cheia conhecida ou de uma faixa de 100 metros para cada lado da
linha de margem do curso de água, quando se desconheça aquele.
Na sequência do diploma de 1987, foram publicadas as zonas adjacentes nas ribeiras da Lage
4
,
das Vinhas
5
, do Jamor
6
e de Colares
7
, encontrando-se já delimitadas e em fase de preparação para
publicação nas ribeiras de Barcarena e de Odivelas e no rio de Loures. Estas demarcações não
correspondem à totalidade das áreas em condições de serem classificadas, sendo comuns as
resistências por parte dos Serviços responsáveis e das Câmaras Municipais, dado que tal condiciona a
intensificação da ocupação urbana ou de outras actividades vulneveis (SARAIVA, 1999).
1
Leito é o “terreno coberto pelas águas, quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades;
integrando mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição fluvial”. O leito das águas fluviais é limitado pela linha
correspondente à estrema das terras que as águas cobrem em condições de cheias médias, sem transbordar para o solo
natural.
2
Margem é a faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas. A margem das águas navegáveis
ou flutuáveis sujeita à jurisdição das entidades marítimas ou portuárias tem uma largura mínima de 50 metros, passando a
30 metros nas restantes águas navegáveis ou flutuáveis e a 10 metros nas águas não navegáveis ou flutuáveis.
3
Zona adjacente é a área contínua à margem classificada como tal por decreto, em virtude de se encontrar ameaçada por
cheias, até à linha alcançada pela maior cheia centenária. Até à classificação estão sujeitas ao regime de zonas adjacentes
as áreas contínuas às margens que se encontrem dentro do limite da maior cheia conhecida ou numa faixa de 100 metros
quando aquele se desconheça.
4
Decreto Regulamentar 45/86, de 26 de Setembro
5
Portaria 349/88, de 1 de Junho
6
Portaria 105/89, de 15 de Fvereiro
7
Portaria 131/93 (2ªrie)
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
5
Quadro 1 – Restrições à ocupação nas zonas adjacentes segundo o Decreto-Lei nº 89/87
1. Zonas non aedificandi
Interdito Permitido
construção de edifícios ou realização
de obras que concorram para a
obstrução à livre passagem das águas
implementação de infra-estruturas ou de
obras de hidráulica mediante parecer
favorável do INAG e respectiva CCDR
divisão da propriedade rústica em
áreas inferiores à unidade mínima de
cultura
instalação de equipamentos de lazer
(sem construção de edifícios) mediante
parecer vinculativo do INAG e
respectiva CCDR
destruição do coberto vegetal e
alteração do relevo natural
instalação de lixeiras, parques de
sucata qualquer outros depósitos de
materiais
2. Zonas de ocupação condicionada
Permitido
instalação de edifícios que constituem
complemento indispensável de outros já
existentes e licenciados ou que se
encontrem inseridos em planos já
aprovados
as cotas dos pisos inferiores a construir
deverão ser sempre superiores às cotas
previstas para a cheia centenária
Em 1983 o domínio público hídrico foi integrado na Reserva Ecológica Nacional (REN), criada
pelo Decreto-Lei 321/83, de 5 de Julho e posteriormente alterada pelo Decreto-Lei nº 93/90, de 19 de
Março. Esta abrange zonas ribeirinhas, águas interiores, áreas de infiltração máxima e zonas
declivosas. No âmbito das águas interiores integram-se os “leitos dos cursos de água e zonas
ameaçadas por cheias”.
Sendo a REN entendida como uma estrutura biofísica básica, garante da protecção de
ecossistemas e indispensável ao enquadramento equilibrado das actividades humanas, é lógico que
inclua os sistemas hídricos e elementos conexos, perspectivando-se a salvaguarda em simultâneo da
água enquanto recurso estratégico e protegendo as populações dos riscos que ela pode potenciar.
As áreas integradas na REN fazem parte das restrições de utilidade pública obrigatoriamente
identificadas em todos os instrumentos de planeamento que definem a ocupação física do solo.
Todavia, nas áreas urbanas e urbanizáveis tem-se procedido à desafectação das áreas sujeitas ao
regime da REN, prejudicando a informação relativa aos riscos de cheia. Para salvaguardar esta
situação, o Decreto-Lei 364/98 de 21 de Novembro, da responsabilidade do MEPAT, estabelece a
obrigatoriedade de elaborar a “carta de zonas inundáveis” no interior dos perímetros urbanos nos
municípios com aglomerados urbanos atingidos por cheias. Estas áreas sujeitas a risco de inundação,
demarcadas a escala adequada, devem ser consideradas nos Planos Municipais de Ordenamento do
Território (PMOT - PDM, PU e PP), permitindo repor esta condicionante na definição do uso do solo,
assegurando uma gestão de prevenção mais eficaz e formas de actuação em casos de emergência.
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
6
Aquele diploma fixou um prazo de 18 meses para os PMOT procederem à integração daquelas
orientações. Determinou ainda (artigo 2º) que os regulamentos dos PMOT estabeleçam as restrições
necessárias para fazer face ao risco de cheias:
- nas áreas urbanas minimizando os seus efeitos através de normas específicas para a
edificação, sistemas de protecção e de drenagem e medidas para a manutenção e
recuperação das condições de permeabilidade dos solos.
- Nas áreas urbanizáveis, proibindo ou condicionando a edificação.
No âmbito dos instrumentos de planeamento territorial a Planta de Condicionantes constitui um
suporte fundamental à definição de Plantas de Ordenamento, de Zonamento ou de Implantação,
conforme se esteja perante um PDM, um PU ou um PP.
Como é sabido todos os municípios do Continente dispõem de PDM, o que significa que este
território está coberto por plantas que sistematizam as diferentes condicionantes à sua ocupação,
devendo aí ter destaque as associadas ao domínio hídrico.
No âmbito do planeamento sectorial, os Planos de Bacia Hidrográfica, integrados nos Planos de
Recursos Hídricos (Decreto-Lei nº 45/94, de 22 de Fevereiro), têm de apresentar um diagnóstico com a
identificação de zonas e situações de risco de cheias, bem como da sua avaliação, com
obrigatoriedade de explicitação das acções de regularização e controle das cheias. Todavia, estes
planos são sobretudo instrumentos políticos que determinam a acção da Administração na gestão dos
recursos hídricos e na política de ordenamento do território.
3.2 Implementação de medidas correctivas
Na região de Lisboa, as inundações de 1967 desencadearam acções de limpeza e desobstrução
dos leitos de cheia, mas as de 1983 evidenciaram a elevada vulnerabilidade de parte desse território a
este tipo de evento. Na sequência deste, a Resolução do Conselho de Ministros nº2/84, de 4 de
Janeiro, no âmbito da Direcção-Geral do Ordenamento do Território, constituiu um Grupo de Trabalho
com vista ao estudo das causas e efeitos das cheias na Região da Grande Lisboa e das medidas a
adoptar. As conclusões apontaram como principais causas destas ocorrências o aumento das áreas
impermeabilizadas e a obstrução das áreas contíguas aos cursos de água pela ocupação urbana. O
estudo deu origem ao designado Programa de Controle da Cheias da Região de Lisboa (PCCRL). Este
documento é inequívoco quanto à responsabilidade da incorrecta ocupação no agravamento das
situações de cheia e aponta a necessidade de realizar obras de regularização fluvial e de evitar a
ocupação urbana das áreas contíguas aos cursos de água. Este alerta, propondo medidas correctivas
fundamentais, focalizadas nos pontos críticos onde ocorre inundação acabou por menorizar a
indispensável visão global e integrada da ocupação da bacia.
As fortes chuvadas de Dezembro de 1985 e respectivas consequências levaram à constituição
de uma Comissão integrada no PCCRL, com a finalidade de proceder à elaboração de um programa de
emergência, cujas acções se iniciaram em 1986.
Assim, para melhorar as condições de escoamento das ribeiras, foram feitas obras de limpeza,
desobstrução, alargamento e aprofundamento dos leitos menores das principais ribeiras, correcção de
estrangulamentos e pontos críticos, e construção de protecções marginais. Paralelamente foram
desenvolvidos estudos com vista à detecção da vulnerabilidade à ocorrência de inundações e à
definição de medidas não estruturais e estruturais. As primeiras visavam o controlo do licenciamento,
disciplinando a ocupação dos leitos de cheia, reformulação da fiscalização, acções de sensibilização da
opinião pública e criação de planos de emergência conjugados com sistemas de previsão e alerta de
cheias. As segundas compreendiam obras de conservação, obras de correcção e controle das cheias,
nomeadamente planos de intervenção nas bacias hidrográficas, correcção da torrencialidade,
regularização fluvial, substituição de construções nos leitos com secção de vazão insuficientes e
protecções marginais. Para cada bacia foi elaborado um plano de ordenamento, uma carta de
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
7
restrições à ocupação edificada e uma proposta de correcção do uso agro-florestal (SARAIVA, 1988).
O plano de ordenamento definiu as zonas inundáveis para vários períodos de retorno, bem como a
extensão da última grande cheia, constituindo o suporte à posterior delimitação de zonas adjacentes. A
carta de restrições teve em conta a vulnerabilidade aos riscos de cheia e à contribuição para o seu
potencial agravamento devido à impermeabilização.
As acções descritas inserem-se em ciclos de acção/apatia (SARAIVA, 1999). Cada episódio de
inundação grave tende a desencadear um conjunto de intervenções - correctivas do escoamento e
institucionais associadas à política de ordenamento do território. As primeiras tendem a ser prioritárias
devido aos seus efeitos imediatos (visibilidade da obra com incremento da sensação de segurança); as
segundas (propostas ao nível da ocupação do território), de implementação mais diferida no tempo e
com uma relação de causalidade de mais difícil apreensão, tendem a ser descuradas e, no limite,
abandonadas. Assim, entra-se numa fase de apatia, abruptamente interrompida por um novo episódio,
que retoma o ciclo descrito. Esta prática recorrente tende a privilegiar a acumulação de obras
estruturais, muitas vezes peças isoladas de conjuntos nunca completos, que leva a uma falsa sensação
de segurança, indutora de intensificação de ocupação em áreas antes consideradas de risco. Em
situação de crise, o colapso do sistema (diques, pontões, canais, encanamentos) agrava a dimensão
da inundação e dos prejuízos.
4. A BACIA HIDROGRÁFICA DO TRANCÃO - O CASO DA RIBEIRA DE ODIVELAS E RIO DE
LOURES
4.1 Principais características
Aspectos geomorfológicos
Como referido anteriormente, na região de Lisboa ocorrem episódios de precipitação intensa,
que podem atingir ou ultrapassar o tempo de concentração das cheias nas pequenas linhas de água.
No caso particular da bacia do Rio Trancão, que corresponde aproximadamente ao território do
município de Loures
8
, as características da rede hidrográfica e do relevo conjugam-se de forma a tornar
as cheias mais violentes (AMARAL, 1968). Do ponto de vista morfológico, distinguem-se duas áreas
distintas: uma, de relevo movimentado, inclui os sectores de montante das principais ribeiras e ocupa a
maior parte da bacia; a outra, no sector de jusante (alongando-se de sudoeste para nordeste),
corresponde à planície aluvial. Na primeira localizam-se as cabeceiras das numerosas linhas de água,
muito e encaixadas e marginadas por vertentes declivosas, de formas complexas e sujeitas a rápidos
processos de evolução (ravinamentos, deslizamentos e por vezes queda de blocos), em função da
litologia, estrutura e clima locais. As formações superficiais apresentam natureza argilosa e reduzida
permeabilidade o que, associado aos fortes pendores, leva à transformação célere da precipitação em
escoamento. Este, em função do acentuado declive dos perfis longitudinais das linhas de água, atinge
rapidamente as ribeiras principais e converge na planície aluvial. No caso de fortes chuvadas, as
correntes formadas adquirem forte poder de erosão e de transporte, carreando para jusante os
materiais provenientes das vertentes e acumulados, por vezes durante anos, no fundo dos talvegues.
Na segunda destas áreas, a planura e baixa altitude (2 a 14 metros) levam a uma diminuição
acentuada da impetuosidade do escoamento e a uma forte deposição de sedimentos. Nas cheias de
maior magnitude dá-se o transbordo do leito menor e a inundação da baixa aluvial. A evacuação das
8
No caso presente consideram-se ainda os limites do antigo concelho de Loures, onde se enquadra a quase totalidade da
bacia hidrográfica do Trancão, dado que os instrumentos de planeamento municipal se reportam ainda ao período anterior à
criação do município de Odivelas.
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
8
águas do fundo desta planície é dificultada no sector terminal do Trancão, pela sua forma encaixada e
pela influência das marés.
Para a génese das cheias contribui, também, a forma circular da bacia, o tempo de concentração
das cheia (inferior à duração dos episódios de chuva intensa de maior período de retorno) semelhante
nos principais cursos de água que convergem no sector central da depressão (Rio Trancão, Rio de
Fanhões, Rio de Loures e Ribeira da Póvoa) e, ainda, a acção do homem. A este se deve a destruição
do coberto vegetal e a impermeabilização em numerosos sectores, com diminuição da infiltração,
aumento dos caudais de ponta e da velocidade de escoamento, bem como obstruções, nalguns
sectores, à progressão das águas ou seja, uma actuação no sentido de fomentar as inundações.
Ocupação do território
O concelho de Loures manteve características rurais até à algumas décadas atrás. A produção
agrícola especializou-se no cultivo de produtos frescos e outros para abastecimento da capital. A
Várzea de Loures, com mais de 700 hectares, teve o aproveitamento agrícola condicionado por
problemas de drenagem, salinidade dos solos e insalubridade, até aos anos trinta do século passado.
Nesta época, o Governo promoveu obras de enxugo e defesa a fim de permitir um melhor controle da
água e promover a actividade agrícola. Este aproveitamento, em exploração nos finais de 1939, tem
sido gerida pela Associação de Beneficiários da Várzea de Loures
9
. Desta foram entretanto destacadas
várias parcelas para construção de áreas habitacionaI (cerca de 10 hectares) e de infra-estruturas
rodoviárias, como a via rápida Lisboa-Loures (16 hectares). Outras vias rodoviárias cruzaram
entretanto a planície aluvial, nomeadamente a CRIL e o IC 22, que passam respectivamente a leste e
norte de Odivelas.
Apesar da sua contiguidade a Lisboa, o seu processo de suburbanização foi tardio. Para tal
concorreram a ausência do caminho de ferro (que favoreceu a expansão nos eixos de Sintra, Cascais e
Vila Franca de Xira), bem como outras ligações, dificultadas pela topografia. Assim, até aos anos 60
apenas sobressai os núcleos contíguos a Lisboa – Odivelas/Olival Basto, Pontinha e Moscavide. O
progressivo crescimento da área metropolitana atinge de forma mais expressiva o concelho já na
viragem para a década de 70, apoiando-se a mancha urbana nos corredores de ligação à capital:
Odivelas – Loures, Sacavém - S. João da Talha - Santa Iria de Azóia; Odivelas – Caneças; Pontinha –
Caneças. Fora destes corredores, os fortes condicionamentos físicos e a diminuta valia desses
terrenos para construção levaram à multiplicação de loteamentos ditos clandestinos.
Num contexto de forte crescimento urbano, o Plano Director Municipal (PDM) é lançado nos
anos 80. A extensa mancha urbana edificada e as múltiplas pretensões de urbanização justificam o
modelo territorial proposto para esta parte do município, que se traduziu num contínuo urbano entre a
Pontinha e Loures.
4. 2 Instrumentos de intervenção
Neste âmbito refiram-se dois tipos de instrumentos – os associados à regulação da
transformação do uso do solo, de que se releva o Plano Director Municipal (1994), em revisão, o Plano
Municipal de Intervenção nas Florestas e o Plano de Emergência Específico para Cheias na Bacia do
Rio Trancão (1997), em fase de apreciação.
Em sede de Plano Director Municipal salientam-se:
- os critérios que suportaram a demarcação da Reserva Ecológica (onde se integra o domínio
hídrico) e a sua integração na planta de condicionantes;
9
A Associação de Beneficiários da Várzea de Loures foi criada em 3 de Agosto de 1944 e tomou posse da obra realizada
em 1947.
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
9
- o modelo de ordenamento e mancha urbana proposta;
- a regulamentação relativa à ocupação das áreas com potencial risco de inundação.
Para o primeiro caso toma-se como referência o estudo de LIRA (1998), que confronta, para o
sector meridional da bacia (Ribeira da Póvoa e baixa de Loures), a Reserva Ecológica aprovada com a
resultante da aplicação dos critérios constantes no diploma que a suportou (Decreto-Lei nº 321/83).
Seguindo as orientações aí estabelecidas, a reserva ecológica no município considerou uma faixa de
protecção de 100 metro junto do estuário, as linhas de água e leitos de cheia, cabeceiras dos cursos de
água, encostas com declive superior a 25%, escarpas e faixas de protecção adjacentes, áreas de
infiltração máxima, solos degradados por erosão superficial, pedreiras abandonadas e faixas de
protecção de 100 metros junto das auto-estradas e de 50 metros nas estradas nacionais. A esta área,
que LIRA designa por “reserva ecológica bruta”, foram subtraídas as manchas edificadas, as áreas de
ocupação clandestina, os terrenos ainda não construídos mas já com alvarás ou com processos de
loteamento em apreciação. A área resultante, apelidada de “reserva ecológica líquida”, é
substancialmente inferior à anterior, o que não surpreende, pois não engloba uma grande mancha de
urbanizações ilegais, em geral ocupando terrenos com condicionantes físicos que os integram na REN
e considera os compromissos e expectativas de ocupação então existentes. Porém, neste sector, a
reserva ecológica aprovada, é ainda mais reduzida, ficando praticamente acantonada à baixa aluvial e
a parte significativa da costeira de Loures. Esta desafectação indiferenciada coloca reservas, dado que
as limitações à ocupação consideradas como importantes são eliminadas sem quaisquer medidas
cautelares (por exemplo, dando orientações precisas para, no âmbito da definição de usos urbanos,
salvaguardar o funcionamento das linhas de água, integrando-as na estrutura verde secundária).
Assim, áreas de fortes limitações à urbanização foram integradas na mancha urbana e geraram
impermeabilizações em sectores de montante (encostas com declive acentuada, cabeceiras e leitos de
cheia de pequenas linhas de água). A multiplicação destas práticas e o seu efeito cumulativo potenciam
situações gravosas a jusante, onde se reflectem todas as intervenções na bacia. As áreas inundáveis
são autonomizadas na planta de condicionantes e consideradas zonas de protecção, devendo
obedecer ao regime jurídico definido pelos Decreto-Lei nº 89/87 e Decreto-Lei nº364/98.
A Planta de Ordenamento do PDM de Loures mostra uma ocupação urbana em extensão na
parte sul do concelho, exceptuando a várzea e a costeira de Loures. Na classe de espaço "Espaços
Urbanos" é considerada a categoria de “espaços urbanos sujeitos a inundações”, que contemplam
vários usos. Para esta categoria, o artº 58º do Regulamento do Plano determina:
1 – As áreas urbanas existentes sujeitas a inundações estão sujeitas aos seguintes
condicionamentos:
a) Excepcionalmente, em espaços intercalares do tecido urbano, e desde que sejam
complementares das edificações existentes e estejam em zonas aprovadas até à data
deste Regulamento, poderão ser licenciadas novas construções. Os projectos das novas
edificações devem demonstrar estarem inequivocamente adaptados para poder resistir
aos riscos previsíveis;
b) Nos novos edifícios não serão autorizadas caves e os pisos térreos não podem ter uso
habitacional, podendo ser obrigatória a elevação da cota de soleira, a qual ficará superior
à cota de maior cheia conhecida.
2 – Nestas áreas são admitidos equipamentos urbanos desde que não ponham em perigo a
segurança de pessoas e bens e salvaguardando adequado enquadramento ambiental.”
Para as demais áreas urbanas e urbanizáveis apenas são apontados os índices urbanísticos
correspondentes.
O mesmo Regulamento (artº 80º) determina também a total proibição de novas construções nas
áreas agrícolas sujeitas a inundações.
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
10
Em Portugal, a execução das áreas urbanizáveis depende, no essencial, da iniciativa dos
particulares detentores do solo urbano, apoiadas na legislação do loteamento urbano, remetendo-se as
autarquias para o papel reactivo de verificação do cumprimento dos usos e índices correspondentes. A
passagem do macrozonamento do PDM (à escala 1:25.000) para o desenho urbano do loteamento (à
escala 1:1000) transfere para os particulares a responsabilidade da concepção da morfologia urbana.
Nos territórios com topografia acidentada, como é o caso de grande parte das áreas urbanizadas
do concelho Loures, o desenho urbano e a tipologia dos edifícios deveriam ter em conta esses
aspectos (implantação dos edifícios respeitando o declive do terreno e a exposição solar, planeamento
dos espaços verdes e superfícies aquáticas com capacidade de corrigir o aumento do escoamento
superficial, bem como outras preocupações relacionadas com o ambiente urbano e o regular
funcionamento do sistema natural), o que excepcionalmente acontece, já que a motivação que lidera a
acção dos particulares está associada à rentabilização máxima da propriedade. Exemplos desta
realidade podem encontrar-se em urbanizações já com algumas décadas como a Arroja e os Bons
Dias, mas também noutras recentes como a Ramada, marginal ao IC 22.
Esta prática continuada potencia problemas não completamente resolvidos pelas soluções
estruturais. Em situações de catástrofe os prejuízos são assumidos pela população ou na falta de
recursos desta pela própria Administração.
O Plano Municipal de Intervenção nas Florestas, iniciado em 1990, em parceria com diversos
organismos do Estado, pretende, entre outros objectivos, a regularização do regime hídrico e a
diminuição da gravidade das cheias, a par da protecção do solo. Com particular incidência na parte
norte do concelho, prevê a reflorestação de 3.000 hectares. Embora já iniciada, a sua implementação
tem sido lenta. Esta medida de ordenamento do espaço rural, sendo estratégica, exige uma
implementação continuada, de modo a ter resultados consistentes a médio/longo prazo.
À Protecção Civil compete, de acordo com a Lei nº 113/91, de 29 de Agosto, “(...) prevenir
riscos colectivos inerentes a situações de acidente grave, catástrofe ou calamidade e de atenuar os
eus efeitos e socorrer as pessoas em perigo, quando aquelas situações ocorram” (artigo 1º). No
Concelho de Loures, o Serviço Municipal de Protecção Civil (SMPC) está dotado, desde 1997, do
Plano de Emergência Específico para Cheias, visando assegurar a protecção de pessoas e bens na
área de inundação. A sua eficácia tem como base a previsão de ocorrência de cheias. Esta resulta da
informação pelo INAG ao SMPC, de uma previsão em tempo real das precipitações intensas esperadas
que possam originar inundações. A antecipação, de cerca de 6 horas, face à ocorrência do evento,
permite desencadear a activação do Plano de Emergência Específico para Cheias. Este contém uma
inventariação pormenorizada das infra-estruturas e meios existentes no Concelho que podem ser
mobilizados de modo a responder às exigências previstas para uma cheia com período de retorno de
100 anos. O envolvimento das várias entidades a mobilizar é coordenado pelo Centro Municipal de
Operações de Emergência, sob supervisão do SMPC.
O Plano de 1997 identifica a população (1.100 habitantes) e os postos de trabalho (2.200) com
risco de inundação e aponta os meios a mobilizar em situações de emergência.
4.3 Limitações actuais
No âmbito das acções previstas pelo PCCRL em 1994, foram executadas obras, nomeadamente
de limpeza, correcção de infra-estruturas, e da torrencialidade de algumas linhas de água (exemplo de
obras na freguesia de Caneças e em Odivelas). As de maior vulto foram a regularização de um troço da
ribeira da Póvoa, à entrada da localidade com a mesma denominação, e de outro no rio da Costa em
Odivelas. A primeira concomitante com a construção da via rápida Lisboa - Loures e a segunda com a
da CRIL. Em ambos os casos a construção dos referidos eixos viários implicaram o desvio do leito da
ribeira e a sua reposição noutro sector da baixa aluvial, dimensionado tendo em conta a
impermeabilização de toda a bacia a montante. Contudo, o novo leito continua-se, a jusante, pelo
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
11
traçado antigo com uma capacidade de vazão muito inferior, diques laterais em terra e com o fundo do
leito a um nível pouco inferior ao da planície. Esta situação, em caso de ruptura do dique, potencia uma
enorme inundação, em particular na Póvoa de Santo Adrião, comprometendo a segurança das
construções a jusante, alinhadas ao longo de uma via perpendicular à ribeira e que funciona como
obstáculo à progressão das águas.
Também a eficácia dos sectores intervencionados fica durante longos períodos comprometida
pela falta de limpeza. Estas linhas de água de cacter torrencial arrastam grande quantidade de
entulhos para o sector de jusante onde podem constituir forte constrangimento ao escoamento. No
fundo impermeabilizado desenvolvem-se canaviais e crescem árvores que chegam a atingir elevado
porte. A limpeza e desobstrução das linhas de água e respectivas margens é matéria fundamental para
assegurar situações regulares de escoamento. O Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro atribuía
essa responsabilidade às autarquias nos troços das linhas de água inseridos em aglomerados urbanos
e aos particulares fora deles, embora sob licença quando envolvessem acções de regularização, aterro
e escavações ou alterações do coberto vegetal. Todavia, o reconhecimento do incumprimento
generalizado desta tarefa por parte dos particulares e a dificuldade de fiscalização pela entidade de
tutela, justifica a alteração da situação pelo Decreto-Lei nº 234/98, de 22de Julho, que transferiu a
limpeza e desobstrução das linhas de água fora dos aglomerados para as entidades com jurisdição
sobre o domínio público hídrico.
Esta nova circunstância coloca em evidência a necessidade de coordenação entre o poder local
e poder central, bem como do efectivo cumprimento das obrigações de limpeza que lhes são
atribuídas.
Apesar das intervenções estruturais referidas e das propostas de ordenamento apontadas, nos
últimos anos verificaram-se episódios localizados de inundação, nem sempre resultantes do
galgamento dos leitos das ribeiras. A génese de muitos destes episódios está associada à ocupação
indiscriminada das pequenas bacias, em regra subestimada pelas autoridades.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de urbanização não tem habitualmente em conta as disfunções hidrológicas que
promove nem outras mutações do meio físico desencadeadas na bacia hidrográfica, consequência da
alteração do uso do solo (por exemplo, abandono das actividades agrícolas, desflorestação, construção
de infa-estruturas viárias).
A urbanização sistemática e por vezes anárquica das pequenas bacias hidrográficas da AML é
um dos factores que potenciam as inundações, aumentando o coeficiente de escoamento, diminuindo o
tempo de concentração das enchentes e multiplicando os prejuízos.
Os aspectos atrás descritos mostram que nas situações de inundação há uma maior eficácia das
medidas correctivas a curto prazo, o que leva a menorizar outros tipos de intervenção. Porém, as
associadas à ocupação do território podem ter um efeito muito benéfico a longo prazo, mas tal exige
uma aplicação continuada, encarando a bacia como um “organismo” que deve ser planeado como um
puzle (cujo bom funcionamento depende da conjugação harmoniosa de todas as peças) e respeitando
as funções naturais da bacia. Assim, não basta as áreas inundáveis constituírem uma condicionante na
definição dos modelos de organização territorial nos planos de ordenamento. A ocupação das bacias
hidrográficas (forma, usos, intensidade de uso) deverá atender às particularidades físicas do território
para obviar problemas futuros.
Segundo alguns autores a solução mais adequada seria deixar a inundação ocorrer
naturalmente. Contudo, essa não é a posição institucional que, como foi visto, tende a agir na
sequência de eventos catastróficos com uma sucessão de ciclos de acção e de crescente inércia até à
ocorrência de novo episódio. Este comportamento tem graves consequências na conclusão dos
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
12
processos de implementação de medidas correctivas e ainda mais das resultantes das políticas de
ordenamento do território.
A actual prática de urbanização pode melhorar no futuro, obrigando os novos empreendimentos
a assegurar a manutenção do escoamento ao nível pré-existente à intervenção realizada, promovendo
soluções de ocupação que permitam a infiltração e ou retenção do escoamento excedente.
Em vários países, nomeadamente nos EUA, crescem as críticas às intervenções estruturais,
pelos seus impactos no ambiente, apostando em soluções que permitam a recuperação das funções
ecológicas dos leitos de cheia. O controle sobre a ocupação do território é feito com a aplicação de
medidas indirectas como o zonamento em função do risco de inundação associado a uma política de
seguros. Esta é baseada em prémios de seguro diferenciados em função do risco da área em que se
incluem os edifícios e actividades a segurar. Esta política apela a uma responsabilização individual e
contribui para um ordenamento que tem em consideração o grau de risco inerente a cada área. Em
Portugal estamos longe de soluções deste tipo. As nossas seguradoras ou não diferenciam áreas em
função de riscos específicos ou apenas têm um macro-zonamento com penalização dos prémios nas
regiões em que o conjunto daqueles é mais elevado.
Em síntese, do que foi exposto parece não haver dúvidas quanto à necessidade de:
implementar soluções que considerem o sistema fluvial na sua totalidade, incorporando as
interdependências entre os diversos sectores da bacia;
ter em conta que os dispositivos de gestão das áreas inundáveis nem sempre actuam com
eficácia;
promover a contínua implementação das medidas (estruturais e não estruturais) aprovadas
por todas as partes envolvidas, com particular destaque para o Estado;
evitar a conflituadidade e desresponsabilização resultante da partilha de competências entre
organismos ou diferentes níveis da Administração.
Como as inundações fazem parte do funcionamento natural do sistema hidrológico, nas áreas
ocupadas as intervenções para minimizar os seus efeitos devem ser complementares. Assim, as
acções de regularização não devem constituir um estimulo a ocupações de risco, concorrendo para o
desordenamento do território.
Bibliografia
AMARAL, I. - “As inundações de 25/26 de Novembro de 1967 na região de Lisboa”, Finisterra, III,
5, pp. 79-84
CHAPMAN, D. – Natural Hazards, Oxford, Oxford University Press, 1994
COSTA, P.C –As Cheias Rápidas de 1967 e 1983 na Região de Lisboa”, in Estudos em
Homenagem a Mariano Feio,, Lisboa, 1986, pp. 601-616.
DGRN/Grupo de Trabalho das Cheias – Estudo das causas das Cheias na Região de Lisboa :
Relatório síntese da bacia hidrográfica do rio de Loures e da Ribeira de Odivelas, Lisboa, 1989,
Policopiado
HP – Plano Geral de Intervenção para a Regularização Fluvial e o Controle de Cheias da Bacia
Hidrográfica do Rio Trancão – Plano Geral de Intervenção, 2ª fase, Volume I, Lisboa, INAG,
Policopiado
HP - Plano de Emergência Específico para Cheias na Bacia do Rio Trancão, Volumes I e II,
Loures, Câmara Municipal de Loures, 1997, Policopiado
LIRA, M.M. – Proposta para Corredores Verdes na Sub-Bacia do rio da Costa, Relatório do
Trabalho de Fim de Curso de Arquitectura Paisagista, Lisboa, ISA, 1998, Policopiado
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS
13
QUINTELA, A. – “Cheias repentinas e ocupação de leitos de cheia de pequenos cursos de água”
in Ciclo de Conferências sobre Construção clandestina e gestão de recursos hídricos, Lisboa, APRH,
1988
ROXO, M. J.; VENTURA, J. E. - “As inundações catastróficas de Novembro de 1983 na Região
de Lisboa”, in Estudos em Homenagem a Mariano Feio,, Lisboa, 1986, pp.391-405.
SARAIVA, M.G.- “Defesa contra cheias e ocupação urbana. Aspectos institucionais e inserção no
ordenamento do território” in Ciclo de Conferências sobre Construção clandestina e gestão de recursos
hídricos, Lisboa, APRH, 1988
SARAIVA, M.G. O Rio como Paisagem, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,1999.
7º Congresso da Água
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS RECURSOS HÍDRICOS